É com prazer que compartilho com todos vocês a crítica que Renato Mendes fez do espetáculo "A Jornada de Zé Burrego na Terra dos Inúteis". Renato foi meu aluno, não passou pelo Brinquedo Torto, mas esteve sempre presente em nossa trajetória. Agora, formando-se ator pela Unesp, após assistir "Zé Burrego", ele nos presenteou com esta análise carinhosa.
Nosso Muito obrigado!
Para se Reler uma Política tão Jovem
Abre-se o
livro grandioso. Com páginas de pano tingido e gotas de suor, do qual saltam
estórias, crônicas, das personagens da Terra dos Inúteis, narra uma fábula. Fábula
esta que se mescla com a história de um grupo de teatro, um grupo de colegiais,
um legado de um professor-diretor.
O Grupo
Brinquedo Torto, projeto pedagógico que já envolveu mais de noventa jovens em
suas quase dez formações desde sua fundação, em 2008, teve agora, em 2013, a
temporada de estreia de seu mais novo espetáculo, A Jornada de Zé Burrego na Terra dos Inúteis.
O inesperado público é surpreendido
por uma multidão incontável de jovens cantantes burlescos de vigor inabalável,
que tomam os corredores e o fronte do teatro. Narram, cantam, instigam o que
dali se transcorrerá. Apresentam-se enquanto grupo, demonstram sua unidade,
esta, concisa como a de raros grupos profissionais. Dentro do teatro,
parodiam-se então figuras arquetípicas das relações de poder: um rei corrupto,
uma “cúpula” (à qual o rei se refere sempre com ênfase na primeira sílaba)
caótica e desgovernada, e figuras variadas, porém sempre verossímeis das
camadas abaixo da população. Abelardo, o Alto, “reisidente”, espécie de
rei-presidente, eleito para a realeza, decreta o fim da leitura, e incentiva
atividades banais para o grosso da população, lembrando-nos de que a nenhuma
forma de governo interessa que o público se fomente de sento crítico. E daí
transcorre-se a trama, metáfora de uma sociedade.
Ao fundo da
encenação, o cenário se caracteriza por um livro de estórias, gigantesco, que
ao virar de suas páginas dá pano de fundo à quatro peças que acontecem
simultaneamente: o já citado reisidente, decretando leis com sua cu-pula;
membros emburrecidos da população, que se divertem com banalidades, três marias
fofoqueiras que não se contem em questionar o que está acontecendo pelas ruas;
e um grupo de resistência, já que se tratam de arquétipos, pois onde houver
repressão sempre existirá a subversão.
Estes, resistentes, traficam entre si
entorpecentes de libertação, proibidos por lei: trechos de sonetos e poemas,
que os fazem alucinar, poetizar, enquanto esperam uma profetizada chegada de um
herói, um Zé Burrego, mais burro que todos os burros, que encontrara um livro,
sem nem ao menos saber a que este serve, e que traria com sua arma improvável a
ruína do regime instaurado.
Todas as criaturas fabulares trazidas à vida
por meio de um treinamento intensivo em mascaradas, dádiva enfocada na Commedia dell’ Arte italiana.
O teor
crítico, e mais do que isso, o anseio pela criticidade, refletem o momento no
qual o mutirão de estudantes e seu professor forjaram o texto. Um Brasil tomado
por manifestações de rua. Primeiro, os vinte centavos abusivos da tarifa de
transporte público nas capitais. Depois, uma miscelânea de todas as
reivindicações políticas que se possa imaginar. Em uma “ágora de Babel”, onde
toda a cidadania se manifestava, e raramente um ao outro se entendia, bandeiras
e anti-bandeiras eram levantadas, em uma aura política de incertezas onde só
não estava confuso quem estivesse muito mal informado. À todas as múltiplas
visões que se levantaram, vêm surpreendente aquela multidão de jovens, que
tomaram o palco como a população tomou as ruas, e traz sua vontade de
participar, talvez único consenso nas tais manifestações. Talvez, de fato, seja
necessário um olhar juvenil para entender o que aconteceu com nossa política,
também tão jovem.
Para traduzir uma política ainda
embrionária, um professor-diretor abriu espaço para seus tantos estudantes. Um
projeto marcado por treino estético intensivo nas interpretações, uma escrita
de texto próprio, segmentado, epicisado por quatro-em-um, criações inquietações
musicais originais dos jovens, e um certo ar de megalomania, sem o qual não
seria possível sequer vislumbrar o resultado que se sucedeu.
Uma peça teatral, um processo
pedagógico. O crescimento dos
atores-educandos, num processo teatral como ferramenta pedagógica, e o
resultado-espetáculo como pedagogia social.
Por Renato Mendes – Ator, professor, dramaturgo e
pesquisador de teatro.
Formando pelo Instituto de Artes da Unesp.