sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Crítica de "A Jornada de Zé Burrego na Terra dos Inúteis", por Renato Mendes

É com prazer que compartilho com todos vocês a crítica que Renato Mendes fez do espetáculo "A Jornada de Zé Burrego na Terra dos Inúteis". Renato foi meu aluno, não passou pelo Brinquedo Torto, mas esteve sempre presente em nossa trajetória. Agora, formando-se ator pela Unesp, após assistir "Zé Burrego", ele nos presenteou com esta análise carinhosa.
Nosso Muito obrigado!

Para se Reler uma Política tão Jovem

            Abre-se o livro grandioso. Com páginas de pano tingido e gotas de suor, do qual saltam estórias, crônicas, das personagens da Terra dos Inúteis, narra uma fábula. Fábula esta que se mescla com a história de um grupo de teatro, um grupo de colegiais, um legado de um professor-diretor.
            O Grupo Brinquedo Torto, projeto pedagógico que já envolveu mais de noventa jovens em suas quase dez formações desde sua fundação, em 2008, teve agora, em 2013, a temporada de estreia de seu mais novo espetáculo, A Jornada de Zé Burrego na Terra dos Inúteis.
O inesperado público é surpreendido por uma multidão incontável de jovens cantantes burlescos de vigor inabalável, que tomam os corredores e o fronte do teatro. Narram, cantam, instigam o que dali se transcorrerá. Apresentam-se enquanto grupo, demonstram sua unidade, esta, concisa como a de raros grupos profissionais. Dentro do teatro, parodiam-se então figuras arquetípicas das relações de poder: um rei corrupto, uma “cúpula” (à qual o rei se refere sempre com ênfase na primeira sílaba) caótica e desgovernada, e figuras variadas, porém sempre verossímeis das camadas abaixo da população. Abelardo, o Alto, “reisidente”, espécie de rei-presidente, eleito para a realeza, decreta o fim da leitura, e incentiva atividades banais para o grosso da população, lembrando-nos de que a nenhuma forma de governo interessa que o público se fomente de sento crítico. E daí transcorre-se a trama, metáfora de uma sociedade.
            Ao fundo da encenação, o cenário se caracteriza por um livro de estórias, gigantesco, que ao virar de suas páginas dá pano de fundo à quatro peças que acontecem simultaneamente: o já citado reisidente, decretando leis com sua cu-pula; membros emburrecidos da população, que se divertem com banalidades, três marias fofoqueiras que não se contem em questionar o que está acontecendo pelas ruas; e um grupo de resistência, já que se tratam de arquétipos, pois onde houver repressão sempre existirá a subversão.
Estes, resistentes, traficam entre si entorpecentes de libertação, proibidos por lei: trechos de sonetos e poemas, que os fazem alucinar, poetizar, enquanto esperam uma profetizada chegada de um herói, um Zé Burrego, mais burro que todos os burros, que encontrara um livro, sem nem ao menos saber a que este serve, e que traria com sua arma improvável a ruína do regime instaurado.
 Todas as criaturas fabulares trazidas à vida por meio de um treinamento intensivo em mascaradas, dádiva enfocada na Commedia dell’ Arte italiana.
            O teor crítico, e mais do que isso, o anseio pela criticidade, refletem o momento no qual o mutirão de estudantes e seu professor forjaram o texto. Um Brasil tomado por manifestações de rua. Primeiro, os vinte centavos abusivos da tarifa de transporte público nas capitais. Depois, uma miscelânea de todas as reivindicações políticas que se possa imaginar. Em uma “ágora de Babel”, onde toda a cidadania se manifestava, e raramente um ao outro se entendia, bandeiras e anti-bandeiras eram levantadas, em uma aura política de incertezas onde só não estava confuso quem estivesse muito mal informado. À todas as múltiplas visões que se levantaram, vêm surpreendente aquela multidão de jovens, que tomaram o palco como a população tomou as ruas, e traz sua vontade de participar, talvez único consenso nas tais manifestações. Talvez, de fato, seja necessário um olhar juvenil para entender o que aconteceu com nossa política, também tão jovem.
Para traduzir uma política ainda embrionária, um professor-diretor abriu espaço para seus tantos estudantes. Um projeto marcado por treino estético intensivo nas interpretações, uma escrita de texto próprio, segmentado, epicisado por quatro-em-um, criações inquietações musicais originais dos jovens, e um certo ar de megalomania, sem o qual não seria possível sequer vislumbrar o resultado que se sucedeu.
            Uma peça teatral, um processo pedagógico. O crescimento dos atores-educandos, num processo teatral como ferramenta pedagógica, e o resultado-espetáculo como pedagogia social.




Por Renato Mendes – Ator, professor, dramaturgo e pesquisador de teatro.


Formando pelo Instituto de Artes da Unesp.


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